quarta-feira, 14 de outubro de 2009

No Mosteiro dos Jerónimos

Os dados estavam lançados. Em 1516, vai para o Mosteiro dos Jerónimos substituir Boitaca na direcção da empreitada. A obra, ainda em fase quase inicial, começara catorze anos antes, em 1502. Onze anos depois, estará pronta no essencial.
Dois anos à frente, era também já mestre das obras reais no Convento de Tomar. No mesmo ano de 1519, confia-lhe o rei a construção da sacristia e biblioteca de Alcobaça. Nos Jerónimos, o seu feito técnico mais espantoso será a cobertura da Igreja, em 1522, e que constitui um «momento alto na História da Arte Europeia».

A Castilho se devem, além da igreja, a sala do capítulo, a sacristia, o refeitório e a maior parte do claustro real, bem corno os dois pórticos da igreja — o grande virado ao rio, e o menor, o axial, onde trabalhou Nicolau Chanterene.
Entre outros colaboradores seus da obra dos Jerónimos, devem citar-se Pêro Goterres (sala capitular), Rodrigo de Pontezilha (portal do capítulo), Fernan de la Formosa (sacristia), Francisco de Benavente (claustro real), Pêro de Trilho (seu companheiro já em Sevilha), o irmão Diogo de Castilho, Filipe Henriques (arquitecto da Sé da Guarda), etc.
Mesmo que na construção domine o manuelino, os tempos novos, os próprios frades Jerónimos, muito cultos, e colaboradores como Nicolau Chanterene impulsionarão Castilho a aproximar-se da Renascença. E há já muita decoração «ao romano» em colunas e medalhões.
Examinemos agora o pórtico sul[1]:
O portal sul, iniciado por João de Castilho, apresenta-se, também ele, como uma autêntica "porta da cristandade" de recorte triunfal: na base vêem-se os 12 apóstolos, estando S. Pedro e S. Paulo como os "pilares da igreja", em lugar de destaque; nos botaréus encontram-se sibilas e profetas, ou seja, aqueles que vaticinaram o nascimento de Cristo e a imaculada maternidade de Maria; ao centro do conjunto salienta-se a Virgem dos Reis com o Menino; coroam-no os quatro padres, ou doutores de Igreja, e no ápice o arcanjo S. Gabriel, "anjo-custódio" do reino.
São claras as semelhanças entre a composição da custódia vicentina de Belém e a deste pórtico. Numa ambiguidade premeditada, ambas glorificam a Igreja e o rei, sugerindo para a monarquia portuguesa uma missão providencial.

Sobre a igreja, ouçamos estas palavras[2]:
Emociona o interior da igreja, verdadeiro tratado de arquitectura. O espaço unitário das hallenkirchen atinge aqui uma beleza que parece inexcedível. Segundo Mário Chicó «as igrejas-salões só muito mais tarde aparecem na arte portuguesa e, além de menos frequentes, apenas num grupo limitado mas a que seria impossível negar originalidade estrutural e espacial constituem uma família de monumentos com características próprias. Santa Maria de Belém é um monumento único na arquitectura do século XVI...
E Rafael Moreira, depois de referir as experiências alheias deste tipo de igrejas, diz:
Mas como explicar a suave ambiência tão portuguesa que aqui se respira, senão pelo milagre da harmonia de proporções e por essa luz dourada de Lisboa que vem banhar o espaço e irisa as silhuetas da coração cinzelada na pedra? Luz quase natural, antes filtrada que transfigurada pelas vidraças coloridas (os vitrais actuais dos séculos XIX-XX), recordando a imanente presença divina.
Os famosos pilares da igreja merecem ao mesmo autor estas entusiastas considerações[3]:
Incrivelmente esbeltos, os pilares das naves são lavrados com motivos góticos e renascentistas num alarde de virtuosismo desafiando as obediências de manual estético; faltam-lhes as esculturas, que nunca existiram, a ocupar os anéis de nichos entre mísulas e baldaquinos.
E agora a famosíssima abóbada[4]:

Todo o talento e arrojo de João de Castilho, amplamente demonstrados no lançamento da abóbada comum às três naves, alcançam o cume no espectacular tecto do transepto feito de uma só abóbada sem apoios a dividir o grandioso espaço, vasto como uma outra igreja transversal, certamente pensado para local de cerimónias excepcionais em que participassem os reis e a corte.
E quem poderá esquecer o claustro?[5]
As dependências citadas abrem-se para o claustro, uma das obras capitais e invulgares do mosteiro. Projectado e dirigido ao princípio por Boitaca, seria continuado por Castilho e terminado — parte das galerias superiores — por Diogo de Torralva. Assimilado por Castilho o espírito nacional, o arquitecto lança-se a exprimir esse portuguesismo adquirido, ao mesmo tempo que nele introduz novos elementos estéticos e técnicos criando singulares harmonias. Festa para os olhos, cheio de preciosismos com suas estruturas góticas revestidas de lavores renascentistas e surpreendentes efeitos de luz sobre a plasticidade exuberante, quadrado de cantos cortados a integrar na mesma continuidade as arcarias, assombrosa galeria de escultura de temas religiosos, políticos e alegóricos, o claustro de Belém deve ser saboreado sem pressas. Interpretar as suas mensagens não é fácil; talvez se trate do mais completo retrato de Portugal quinhentista, áureo, sonhador, capaz de uma aventura imensa para tão pequeno Povo.
Nalguns medalhões deste claustro, surgem motivos decorativos surpreendentemente próximos de alguns textos do Auto da Alma de Gil Vicente. Sabendo que esta obra foi concebida para ser representada em Sexta-Feira Santa, são cantados durante ela hinos litúrgicos próprios do dia. Ora, num dos medalhões representam-se, por exemplo, os instrumentos da paixão, em referência clara ao Dulce lignum, dulces clavos, e outro evoca claramente o cântico da Crux fidelis, etc.
Anda também por aqui a influência da rainha velha, D. Leonor, protectora de Gil Vicente, aliás já falecida, e promotora de uma avançada orientação pré-reformista. Orientação a que se deveu, por exemplo, a reforma do Convento vilacondense de Sta. Clara em 1515.
Lembre-se ainda que a representação original da Parsa de Inês Pereira ocorreu no Convento de Tomar, em 1523, talvez numa visita de inspecção, por parte do jovem D. João III, às obras. Assistiu a ela com certeza João de Castilho
Agora uma síntese sobre o Mosteiro dos Jerónimos[6]:
Este edifício será assim uma obra híbrida. Partindo de uma traça claramente tardo-gótica do ponto de vista técnico, adopta soluções de ascendente espanhol e inglês (o sistema de nervuras «de aranhiço») e aplica, pela primeira vez de forma consciente e sistemática, uma decoração «plateresca» influenciada já por uma linguagem clássica – dita também, desde então, «ao romano» - fruto do trabalho de Castilho, mas também dos biscainhos Pêro de Trillo e Rodrigo de Pontezilla (este dirigindo a empreitada da porta da sala do Capítulo). Por sua vez, Nicolau Chanterene, mestre escultor francês, produzirá na porta ocidental a sua primeira grande obra em terra portuguesa, introduzindo num esquema estrutural gótico-manuelino a euritmia, as formas e a sintaxe de um novo gosto que desponta: o do primeiro Renascimento ornamental.
Castilho executa entretanto obra em Alcobaça, onde tem responsabilidades desde 1519, e na Batalha (1528). Neste mesmo ano, vai a Arzila. [1] PEREIRA, Paulo (dir.), História da Arte Portuguesa, Círculo de Leitores, II vol., p.[2] GIL, Júlio (texto) e CALVET, Nuno (fotografias), As mais belas Igrejas de Portugal, Verbo, 1988, vol. I, p. 66.[3] GIL, Júlio (texto) e CALVET, Nuno (fotografias), A s mais belas Igrejas de Portugal, Verbo, 1988, vol. I, p. 67.[4] Ibidem.[5] Op. cit., pp. 68-69.[6] História da Arte Portuguesa, II vol., p. 348.

Imagens: Pormenor do pórtico sul dos Jerónimos, em cima; corredor do Convento de Cristo onde se anunciam já a influências clássicas (ao fundo).

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