quarta-feira, 14 de outubro de 2009

JOÃO DE CASTILHO

Um «homem para construir o Mundo»

João de Castilho, o arquitecto por excelência da Matriz vila-condense, possui uma larga dimensão nacional, pois que o seu nome está indissociavelmente ligado ao Mosteiro dos Jerónimos, ao Convento de Cristo, à fortaleza de Mazagão, até a Alcobaça e à Batalha. Depois, sabe-se hoje, ele foi, ao menos em certos períodos, um homem muito próximo de Gil Vicente. E, em 1542, quando faz a fortaleza de Mazagão, Camões, com 18 anos, já poderia andar por Marrocos, conhecendo certamente a obra aí deixada por João de Castilho.
O trabalho que sobre ele preparei é obra de amador, uma montagem de textos alheios; na ligação que vou fazer entre eles, há-de ser possível encontrar deslizes. Mas é um trabalho de entusiasmo e gosto pela descoberta, sobre uma figura pouco divulgada, talvez por não ser nacional de nascimento. E João de Castilho foi também um homem de entusiasmo e de gosto pela descoberta, e sobretudo um homem de grandes realizações.

De Braga e Vila do Conde a Tomar

Este biscainho inicia a sua carreira na fase final do gótico, no plateresco das catedrais de Burgos e de Sevilha. Mas cedo se há-de ter revelado que, por trás da aparência daquele mestre-pedreiro, se escondia um jovem grandemente dotado no domínio da arquitectura. E por isso, em 1509, D. Diogo de Sousa, o dinâmico arcebispo e humanista bracarense que renovou a face urbanística de Braga, chama-o de Sevilha — ou talvez de Setúbal — para as obras na Sé; teria João de Castilho cerca de trinta anos. Trabalhando ainda ao modo plateresco, lança sobre a capela-mor da Sé "a primeira cobertura pétrea de nervuras curvas que se fez em Portugal. Para além da novidade técnica, é indiscutível o seu magnífico efeito estético". Cabe-lhe o mérito de ter sido o divulgador entre nós desta nova forma de cobrir edifícios. Faz também a galilé.
Ouçamos um especialista sobre a obra que deixou em Braga[1].
A catedral da cidade dos arcebispos guarda o mais antigo testemunho da arte de João de Castilho, a bela capela-mor. Lembremos a descrição que dela fez Vergílio Correia, com todo o seu rigor, sensibilidade e saber:
Rectangular de planta basal, essa capela maior transforma-se no topo em poligonal, por largo corte das esquinas. Contrafortam-na dois botaréus encostados e dois separados dos muros, ligados ao plano chanfrado por curtas e rendados arcobotantes. As faces desses contrafortes são avivadas de colunelos e pilaretes. Uma cornija em andares, variamente adornada nas partes cavadas, suporta uma platibanda ou parapeito vasado de lobulagem chamejante que uma linha de cristas recortadas remata, intervalada de pináculos correspondentes aos hotaréus e com eles ligados. O conjunto arquitectónico e decorativo de contrafortes, cornija, acrotérios, agulhas, florões e gárgulas é do mais rico e pitoresco efeito, porventura não igualado em qualquer outra composição do mesmo género em Portugal.
João de Castilho fez aqui uma obra ímpar, traçando e executando uma abóbada de perfil rebaixado, com uma complexidade de nervuras ainda não experimentada entre nós. Aos tradicionais nervos cruzados, às cadernas e terceletes, junta elementos de ligação curvos, formando como que uma grande flor de oito pétalas no tramo quadrangular, ao qual se junta um rectangular mais pequeno.
É a Braga que vão depois os vila-condenses chamá-lo, em 1511, para dar fôlego novo à construção da Matriz, que se arrastava há 15 anos. Apesar de ser, ao tempo, sem dúvida o mais vasto templo do país (nenhuma sé atingiria as suas dimensões) e de ele refazer a abóbada no estilo da de Braga, apesar de entretanto erguer uma ponte em Guimarães, ao fim de três anos a sua tarefa vila-condense estava concluída.
O grandioso edifício obedece a manuelino do Norte. Ouçamos também aqui um especialista[2]:
Bem proporcionado, o espaço das três naves divide-se em quatro tramos de arcos de volta perfeita suportados por colunas oitavadas alternando faces planas e côncavas, com finos colunelos nos ângulos.
No lado da entrada, três arcos sustentam o coro — muito bem lançado o arco abatido centra.
E este autor conclui falando na grande beleza do pórtico.
[1] DIAS, Pedro, Arquitectura manuelina, Livraria Editora Civilização, Porto, 1988, p. 134.
[2] GIL, Júlio (texto) e CALVET, Nuno (fotografias), As mais belas Igrejas de Portugal, Verbo, 1988, vol. I, p. 67.

Imagens pela ordem em que estão dispostas no texto:
Exterior da capela-mor da Sé de Braga, obra de João de Castilho
Abóbada da mesma capela-mor
Abóbada da galilé da Sé de Braga
Matriz vila-condense
Pórtico da Matriz vila-condense

Em Tomar (1515-1516)

O domínio artístico e técnico que vinha revelando (os especialistas falam, já se viu, da obra-prima que fez em Braga e a que fez na Vila não é somenos - lembrem-se as esbeltas colunas e os arcos de meia volta que separam as naves da Matriz, as abóbadas das absidíolas, o arco abatido que sustenta o coro, o monumental pórtico plateresco, que mereceu ser copiado para Azuaga, província de Badajoz) e, a outro nível, o seu pioneirismo organizativo, verdadeiramente empresarial no sentido moderno, projectam-no a nível nacional.
Chamado em 1515 para a igreja do Convento de Cristo em Tomar, depois de provavelmente ter passado por Viseu, esculpe, em réplica à famosa janela de Diogo de Arruda, o belíssimo pórtico, que data e assina. Cabe-lhe também abobadar o templo. Sobre o portal de Tomar, exprime-se assim certo crítico[1]:
Comecemos pelo portal. Aí, junto à base do lado direito, João de Castilho deixou a sua assinatura e a data de conclusão da obra em iniciais e abreviaturas: João de Castilho construiu em 1515. E uma construção que se filia na corrente peninsular que a historiografia tradicional tem chamado de isabelina, isto é, do tempo de Isabel, a Católica, num gótico final complicado, redundante, com elementos dificilmente conciliáveis e, em geral, sem grandes volumes. Notam-se, no entanto, algumas novidades, um certo barroquismo, que terá de se imputar ao contributo dos canteiros locais e até à adopção da estética lusitana, ali tão patente na obra dos Arruda.
O vão da porta tem terminação semicircular, com arquivoltas constituídas por colunelos finos e intercolúnios com decoração variada, em que alternam os grutescos proto-­renascentistas com a funda folhagem, na qual os pedreiros introduziram pássaros, amores, etc.
As estruturas góticas ainda estão presentes, mas com uma complexidade maior que o habitual, e, se esta portada ainda não atingiu o estádio do que classificamos como manuelino, respira já de um ar que o anuncia para breve. A parte superior faz lembrar composições coevas castelhanas, com pilaretes ou agulhas a subirem na vertical e a dividirem a página de fundo em três corpos, nas quais se sobrepõem mísulas-dosséis que suportam e abrigam esculturas sacras de talhe rude, mas de bom efeito plástico. Um dossel avança a proteger toda a construção, com uma pequena abóbada de nervuras e o arco belamente debruado com cairéis em forma de corais. No eixo distinguem-se a figura de Nossa Senhora com o Menino ao colo e, inferiormente, a esfera armilar que dois amores sustentam sobre uma urna de feição renascentista. Atente-se ainda na ligação do portal às paredes laterais, conseguida por João de Castilho através da complicação das bases dos botaréus e da colocação de enrolamentos estriados horizontais sem qualquer outra função que a decorativa.

[1] DIAS, Pedro, Arquitectura Manuelina, Livraria Editora Civilização, Porto, 1988, p. 137.

Imagens: Trecho do pórtico da igreja do Convento de Cristo de Tomar (em cima); assinatura de João de Castilho e data no pórtico do Convento de Cristo (em baixo).

No Mosteiro dos Jerónimos

Os dados estavam lançados. Em 1516, vai para o Mosteiro dos Jerónimos substituir Boitaca na direcção da empreitada. A obra, ainda em fase quase inicial, começara catorze anos antes, em 1502. Onze anos depois, estará pronta no essencial.
Dois anos à frente, era também já mestre das obras reais no Convento de Tomar. No mesmo ano de 1519, confia-lhe o rei a construção da sacristia e biblioteca de Alcobaça. Nos Jerónimos, o seu feito técnico mais espantoso será a cobertura da Igreja, em 1522, e que constitui um «momento alto na História da Arte Europeia».

A Castilho se devem, além da igreja, a sala do capítulo, a sacristia, o refeitório e a maior parte do claustro real, bem corno os dois pórticos da igreja — o grande virado ao rio, e o menor, o axial, onde trabalhou Nicolau Chanterene.
Entre outros colaboradores seus da obra dos Jerónimos, devem citar-se Pêro Goterres (sala capitular), Rodrigo de Pontezilha (portal do capítulo), Fernan de la Formosa (sacristia), Francisco de Benavente (claustro real), Pêro de Trilho (seu companheiro já em Sevilha), o irmão Diogo de Castilho, Filipe Henriques (arquitecto da Sé da Guarda), etc.
Mesmo que na construção domine o manuelino, os tempos novos, os próprios frades Jerónimos, muito cultos, e colaboradores como Nicolau Chanterene impulsionarão Castilho a aproximar-se da Renascença. E há já muita decoração «ao romano» em colunas e medalhões.
Examinemos agora o pórtico sul[1]:
O portal sul, iniciado por João de Castilho, apresenta-se, também ele, como uma autêntica "porta da cristandade" de recorte triunfal: na base vêem-se os 12 apóstolos, estando S. Pedro e S. Paulo como os "pilares da igreja", em lugar de destaque; nos botaréus encontram-se sibilas e profetas, ou seja, aqueles que vaticinaram o nascimento de Cristo e a imaculada maternidade de Maria; ao centro do conjunto salienta-se a Virgem dos Reis com o Menino; coroam-no os quatro padres, ou doutores de Igreja, e no ápice o arcanjo S. Gabriel, "anjo-custódio" do reino.
São claras as semelhanças entre a composição da custódia vicentina de Belém e a deste pórtico. Numa ambiguidade premeditada, ambas glorificam a Igreja e o rei, sugerindo para a monarquia portuguesa uma missão providencial.

Sobre a igreja, ouçamos estas palavras[2]:
Emociona o interior da igreja, verdadeiro tratado de arquitectura. O espaço unitário das hallenkirchen atinge aqui uma beleza que parece inexcedível. Segundo Mário Chicó «as igrejas-salões só muito mais tarde aparecem na arte portuguesa e, além de menos frequentes, apenas num grupo limitado mas a que seria impossível negar originalidade estrutural e espacial constituem uma família de monumentos com características próprias. Santa Maria de Belém é um monumento único na arquitectura do século XVI...
E Rafael Moreira, depois de referir as experiências alheias deste tipo de igrejas, diz:
Mas como explicar a suave ambiência tão portuguesa que aqui se respira, senão pelo milagre da harmonia de proporções e por essa luz dourada de Lisboa que vem banhar o espaço e irisa as silhuetas da coração cinzelada na pedra? Luz quase natural, antes filtrada que transfigurada pelas vidraças coloridas (os vitrais actuais dos séculos XIX-XX), recordando a imanente presença divina.
Os famosos pilares da igreja merecem ao mesmo autor estas entusiastas considerações[3]:
Incrivelmente esbeltos, os pilares das naves são lavrados com motivos góticos e renascentistas num alarde de virtuosismo desafiando as obediências de manual estético; faltam-lhes as esculturas, que nunca existiram, a ocupar os anéis de nichos entre mísulas e baldaquinos.
E agora a famosíssima abóbada[4]:

Todo o talento e arrojo de João de Castilho, amplamente demonstrados no lançamento da abóbada comum às três naves, alcançam o cume no espectacular tecto do transepto feito de uma só abóbada sem apoios a dividir o grandioso espaço, vasto como uma outra igreja transversal, certamente pensado para local de cerimónias excepcionais em que participassem os reis e a corte.
E quem poderá esquecer o claustro?[5]
As dependências citadas abrem-se para o claustro, uma das obras capitais e invulgares do mosteiro. Projectado e dirigido ao princípio por Boitaca, seria continuado por Castilho e terminado — parte das galerias superiores — por Diogo de Torralva. Assimilado por Castilho o espírito nacional, o arquitecto lança-se a exprimir esse portuguesismo adquirido, ao mesmo tempo que nele introduz novos elementos estéticos e técnicos criando singulares harmonias. Festa para os olhos, cheio de preciosismos com suas estruturas góticas revestidas de lavores renascentistas e surpreendentes efeitos de luz sobre a plasticidade exuberante, quadrado de cantos cortados a integrar na mesma continuidade as arcarias, assombrosa galeria de escultura de temas religiosos, políticos e alegóricos, o claustro de Belém deve ser saboreado sem pressas. Interpretar as suas mensagens não é fácil; talvez se trate do mais completo retrato de Portugal quinhentista, áureo, sonhador, capaz de uma aventura imensa para tão pequeno Povo.
Nalguns medalhões deste claustro, surgem motivos decorativos surpreendentemente próximos de alguns textos do Auto da Alma de Gil Vicente. Sabendo que esta obra foi concebida para ser representada em Sexta-Feira Santa, são cantados durante ela hinos litúrgicos próprios do dia. Ora, num dos medalhões representam-se, por exemplo, os instrumentos da paixão, em referência clara ao Dulce lignum, dulces clavos, e outro evoca claramente o cântico da Crux fidelis, etc.
Anda também por aqui a influência da rainha velha, D. Leonor, protectora de Gil Vicente, aliás já falecida, e promotora de uma avançada orientação pré-reformista. Orientação a que se deveu, por exemplo, a reforma do Convento vilacondense de Sta. Clara em 1515.
Lembre-se ainda que a representação original da Parsa de Inês Pereira ocorreu no Convento de Tomar, em 1523, talvez numa visita de inspecção, por parte do jovem D. João III, às obras. Assistiu a ela com certeza João de Castilho
Agora uma síntese sobre o Mosteiro dos Jerónimos[6]:
Este edifício será assim uma obra híbrida. Partindo de uma traça claramente tardo-gótica do ponto de vista técnico, adopta soluções de ascendente espanhol e inglês (o sistema de nervuras «de aranhiço») e aplica, pela primeira vez de forma consciente e sistemática, uma decoração «plateresca» influenciada já por uma linguagem clássica – dita também, desde então, «ao romano» - fruto do trabalho de Castilho, mas também dos biscainhos Pêro de Trillo e Rodrigo de Pontezilla (este dirigindo a empreitada da porta da sala do Capítulo). Por sua vez, Nicolau Chanterene, mestre escultor francês, produzirá na porta ocidental a sua primeira grande obra em terra portuguesa, introduzindo num esquema estrutural gótico-manuelino a euritmia, as formas e a sintaxe de um novo gosto que desponta: o do primeiro Renascimento ornamental.
Castilho executa entretanto obra em Alcobaça, onde tem responsabilidades desde 1519, e na Batalha (1528). Neste mesmo ano, vai a Arzila. [1] PEREIRA, Paulo (dir.), História da Arte Portuguesa, Círculo de Leitores, II vol., p.[2] GIL, Júlio (texto) e CALVET, Nuno (fotografias), As mais belas Igrejas de Portugal, Verbo, 1988, vol. I, p. 66.[3] GIL, Júlio (texto) e CALVET, Nuno (fotografias), A s mais belas Igrejas de Portugal, Verbo, 1988, vol. I, p. 67.[4] Ibidem.[5] Op. cit., pp. 68-69.[6] História da Arte Portuguesa, II vol., p. 348.

Imagens: Pormenor do pórtico sul dos Jerónimos, em cima; corredor do Convento de Cristo onde se anunciam já a influências clássicas (ao fundo).

Nos caminhos do Classicismo

Acabadas as obras de Belém, João de Castilho há-de ter-se demorado mais longamente no Convento de Cristo. Mas a sua orientação artística vai entrar decididamente nos caminhos novos da Renascença (1530-1 543)[1]:
A sua linguagem era sujeita a uma lenta metamorfose. Primeiro, como se viu nos Jerónimos, com a introdução de motivos decorativos (que se casavam bem com a tradição tardo-gótica «plateresca», que fundia o gosto decorativo «ao romano» com estruturas «ao moderno»), e, depois, com a adopção de «semas» arquitectónicos já francamente antiquizantes.
Em Tomar[2].

Do claustrim de Santa Bárbara à capela do cruzeiro (1533) seguimos a «descoberta do clássico», que culmina na «obra nova» (1546-1548) das três Salas do Noviciado, em que realiza genialmente o ideal da sala tetrástila vitruviana, e sobretudo na Ermida de Nossa Senhora da Conceição (1547), esse templo romano pousado numa colina de Tomar, com «o mais belo interior do mundo» segundo Watson, erguida para mausoléu de D. João III e sua família (Moreira, 198 lb).
João de Castilho prosseguia uma via de investigação e de quase autodidactisrno. Conheceria certamente o tratado de Diego de Sagredo, Medidas del Romano (Toledo, 1526, editado em Lisboa por três vezes, cm 1541 e 1542, o que diz bem da sua fortuna), e actualizava-se com outras aquisições de saber conceptual, como Vitrúvio — provavelmente através da edição de 1522.
A ele se ficaria a dever a drástica remodelação daquela que viria a ser uma das maiores construções monacais portuguesas: o Convento de Cristo, em Tomar, ampliado por D. João III após a reforma da ordem (promovida por frei António de Lisboa desde 1529). Aí constrói, a partir de 1533, uma formidável mole de edifícios, articulados entre si por uma planta em cruz de inspiração hospitalar. A utilização de caixotões de madeira no cruzeiro do edifício (ainda marcada, na ornamentação da abóbada de meio-canhão, por um simbolismo tardo-medieval, com heráldica e figurações de histórias espirituosas de contornos moralistas), os motivos ornamentais de carácter plateresco «ao romano», as abóbadas dos corredores dos claustros, combinados com alçados arquitravados e arcarias com colunas corintizantes no piso térreo, preludiam a sua definitiva opção pelo Alto Renascimento. O seu primeiro ensaio faz-se através da criação de uma zona de articulação do mosteiro, o insólito Claustro de Santa Bárbara, com as suas grossas colunas e arcos sarapanéis abatidos, documentando uma transição tecnológica sem precedentes (c. 1531), claustrim que escondia, praticamente entaipando...), a portentosa fachada do coro manuelino. Essa opção tomará uma forma definitiva cerca de 20 anos depois na zona do noviciado, onde, em três salas (1550-1551), Castilho ensaia outras tantas vezes a «sala tretrastila» vitruviana, inspirando-se na gravura que dela fez Cesariano. Na última destas salas desenvolve de maneira original esta mítica estrutura da Antiguidade, utilizando aí uma correcta planta centralizada, autonomizando neste projecto — e de uma forma absolutamente classicizante — as colunas. A consequência amadurecida desta escolha será a vizinha Igreja de Nossa Senhora da Conceição, destinada a panteão de D. João III (executada com Pêro de Angorreta, 1551), constituindo, também por si, o testamento estético e espiritual — de carácter agostiniano — do grande mestre, numa obra marcada pelo italianismo dos modelos funerários antiquizantes dos templos in antis e dos mausoléus romanos (Moreira, 1991, pp. 549-570)».

[1] Paulo Moreira in José Mattoso (dir.), História de Portugal, Círculo de Leitores, 1993, vol. III, p. 452[2] Op. cit., p. 453

Imagens pela ordem em que estão dispostas: a perfeição clássica num pormenor do Convento de Cristo; outro exemplo da marca clássica; Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Tomar.

A fortaleza de Mazagão, uma das maravilhas portuguesas no mundo

Vamos agora até aos calores africanos de Mazagão. Está-se em 1542, e «a ascensão imparável do poderio dos xarifes no Sul de Marrocos, equipados com armamento cada vez mais actualizado e dispondo já de conselheiros militares italianos», obrigou a reforçar a defesa[1]:
Caída Santa Cruz do Cabo Gué e evacuadas Safim e Azamor, a alternativa que restava era a debandada total, ou a resistência numa praça tornada inexpugnável segundo os critérios mais modernos de fortificação. Foi esta a opção que vingou, e em que teve peso decisivo o infante D. Luís (secundado pelos desenhos de Francisco de Holanda) com a sua experiência da guerra mediterrânica e das fortalezas «a semelhança das que se fazem em Itália». Em menos de três meses o arquitecto Miguel de Arruda ia com Benedetto da Ravena, requisitado a Espanha, e com Diogo de Torralva ver o sítio de Mazagão e elaborar o projecto, e João de Castilho seguia de Tomar com 1500 (!) pedreiros para pô-lo imediatamente em execução, segundo «a traça desa fortaleza q fez Benedito», mas com inevitáveis pormenores da sua autoria. Menos de um ano depois concluía-se o baluarte sobre o mar, «hua das fortes e fermozas cousas que ha em Espanha», e a muralha ficava fechada, podendo Castilho gabar-se «deste tão homrado edeficio q he o milhor q se fez no mudo nê se achará ê Italya»... Tratava, então, de concluir a cisterna com o aqueduto que a abasteceria de água potável, tornando assim Mazagão «a mais homrada cousa q se vyo no mundo todo». Os factos não desmentem as palavras. A vila amuralhada de Mazagão - hoje uma atracção turística de Marrocos – constitui um dos exemplos mais surpreendentes e bem conservados da arquitectura militar do Renascimento, que resistiu bem ao teste do tempo: só seria abandonada em 1769, devido à falta de interesse do marquês de Pombal em a manter. Ao mesmo tempo teve o efeito de um choque em cadeia, levando à progressiva substituição das fortificações manuelinas na Índia (que por isso desapareceram) e à modernização e das da África, de Portugal e do Brasil, numa extensão simultânea que revela um plano maduramente reflectido.

Maravilhas de origem portuguesa no mundo

Conclusão

Há que dizê-lo sem rebuços: João de Castilho foi o maior arquitecto português do séc. XVI e um dos grandes da Europa do Renascimento. A solidez da sua iniciação profissional (Burgos e Sevilha com Simão de Colónia), o convívio com técnicos italianos (Mazagão), a sua inteligência do espaço, o bom gosto decorativo no talhe da pedra, uma insaciável busca de penetrar a lógica do sistema construtivo renascentista e, acima de tudo, o prodígio da capacidade de trabalho, numa acção titânica ao ponto de, já septuagenário, continuar a «amanhecer e anoitecer na obra», fizeram desta figura discreta – cujos filhos, brasonados e formados, seriam embaixadores, poetas, juizes e cronistas e o sobrinho D. Pedro de Castilho chegou a ser vice-rei de Portugal — o verdadeiro génio surgido no momento oportuno (que, de resto, soube colher). Qual novo Bramante, ele era «homem para construir o Mundo», como dele dizia em 1541 ao rei o capitão de Mazagão, no mais belo elogio que um arquitecto possa ouvir... [2]

Qual grande empresário moderno, João de Castilho geria em simultâneo várias empreitadas Era, como lhe chama alguém «um operoso construtor». Mas era, como se viu, muito mais do que isso.

[1] MOREIRA, Rafael (Dir.), História das Fortificações Portuguesas no Mundo, Alfa, Lisboa, 1989, pp.149 e ss.[2] História da Arte Portguesa, p. p. 347.
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